Há doentes com cancro a deixar de se tratar por dificuldades económicas
O presidente do Colégio de Oncologia da Ordem dos Médicos, Jorge Espírito Santo, diz, em declarações ao jornal Público, que lhe têm chegado “informações, sem carácter oficial, de que há doentes com cancro a faltar a consultas e a tratamentos de rádio e de quimioterapia, devido a dificuldades económicas”.
Carlos Oliveira, presidente da Liga Portuguesa Contra o Cancro (LPCC), confirma ao Público que uma parte dos 2,6 milhões de euros gastos em 2011 na “humanização do apoio ao doente” foram aplicados no pagamento de transporte. Ambos se dizem preocupados.
O primeiro pede razoabilidade e bom senso na aplicação das leis; o segundo solicita apoio, em dinheiro, à população.
Há cerca de meio ano, quando foi internado em Coimbra para mais uma sessão de quimioterapia, Luís Cardona, de 46 anos, residente na Covilhã, descobriu que não teria como regressar a casa. Depois do tratamento, que por ser especialmente agressivo o obrigava a dormir no Instituto Português de Oncologia (IPO), a médica disse-lhe: “Não sei como é que amanhã vai para casa… Infelizmente, não podemos arranjar transporte”.
Luís tem dificuldade em expressar o que sentiu. Estava na fase em que tinha muito medo (diz que o medo “era muito maior antes da cirurgia”); antevia o mal-estar que em breve o ia derrubar; não conhecia uma única pessoa em Coimbra; estava a 200 quilómetros de casa; e tinha dez euros no bolso. Disse à médica: “Aqui é que não fico”. Mas “foi da boca para fora”. Não sabia o que fazer: faltou-lhe o ar, tal a sensação de abandono. Passou assim uma noite. Depois, teve “sorte”. Dos serviços de acção social do IPO, mandaram-no para o gabinete da LPCC. A assistente social acalmou-o. Dar-lhe-ia dinheiro para o autocarro e quando regressasse para novo tratamento, deveria trazer prova dos rendimentos e ela daria o suficiente para outra viagem de ida e volta.
Isso significava quatro horas para lá e quatro horas para cá, o dobro do que demorava de ambulância. Luís, finalmente, inspirou: “Foi como se em vez de dinheiro ela me tivesse dado um balão de oxigénio”.
O que é que aconteceu entre a última requisição de transporte em ambulância e aquela tarde? Os arquivos não indicam qualquer alteração legislativa naquela altura. E pode até não ter acontecido nada de significativo, diz o presidente do Colégio de Oncologia.
“Não tenho conhecimento de que, em qualquer instituição, tenha sido dada uma ordem directa para restringir as requisições de transporte. O que sei, oficiosamente, é que de mês para mês se tem adensado a pressão no sentido de as limitar ao mínimo indispensável; e também que as regras variam consoante o estabelecimento, as mudanças das administrações e as épocas do ano”, diz Jorge Espírito Santo ao Público.
A legislação em vigor, do fim de 2010, limitou o pagamento de deslocações à insuficiência económica ou incapacidade física por motivos clínicos. A queda de requisições, na altura, provocou uma onda de indignação entre corporações de bombeiros.
De então para cá, a confusão sobre quem tem direito a quê e em que circunstâncias só se agravou.
Crise não justifica tudo
A regulamentação do diploma, em Maio, não clarificou a situação, a alteração feita no final de 2011 introduziu mais ruído e o resultado dos avanços e recuos nas recentes negociações entre Governo e bombeiros ainda não tomou forma de lei. “Quando isso acontecer, continuará a não bastar”, diz Jorge Espírito Santo, que pede “bom senso, razoabilidade e cuidado na análise de cada caso”, porque “nenhuma crise justifica que certos limites sejam ultrapassados”.
“Será difícil entender que a crise, que tem deixado tanta gente em situações tão graves, tem reflexos ainda mais sérios na vida de um doente com cancro? Que esta é uma doença que debilita toda a família? Que é ela própria causa de desemprego e de dificuldade em arranjar emprego? Que muitas vezes alguém tem de se despedir [do emprego] para apoiar o familiar doente?”, pergunta o presidente da LPCC.
Luís Cardona, por exemplo, não tinha dificuldades, diz a lei. Ele ganhava 600 euros, a mulher o ordenado mínimo. Acontece que “é preciso fazer contas ao resto”, explica — à prestação da casa; ao preço dos medicamentos; ao custo da alimentação; aos gastos com manuais escolares e com roupa e calçado para o filho; à água, à luz e ao gás; e até à depressão da mulher que, depois de meses de luta, teve de meter baixa, também. “Se não fosse a ajuda da liga, de onde viriam os cem euros para as viagens?”, pergunta.
Manuela Proença, que tem cancro da mama, vive mais perto de Coimbra — em Aveiro. Nos primeiros tempos deslocou-se de ambulância. Primeiro legalmente, depois à boleia, com outros doentes. Até que, um dia, os bombeiros lhe disseram que “não podiam continuar a arriscar”. Foi então que pediu à médica que lhe passasse uma requisição. Ela disse que não, que fisicamente Manuela estava capaz de andar em transportes públicos. E Manuela — que só quando teve cancro descobriu que a patroa não fizera os descontos para a Segurança Social — não explicou que os 187 euros que recebia de Rendimento Social de Inserção não chegavam, sequer, para pagar a prestação da casa.
Como Luís, Manuela diz que teve “sorte”. Indicaram-lhe o gabinete da LPCC. Numa primeira fase, a assistente social deu-lhe dinheiro para o transporte. Depois, quando se apercebeu de que ela estava em risco de perder a casa e de que não se alimentava devidamente, abriu outro processo, para o chamado apoio de segunda linha, e passou a dar-lhe 250 euros por mês. “Foi o que me valeu para endireitar a vida”, diz Manuela.
Ainda está a fazer radioterapia, mas já arranjou emprego e pagou quase “todas as dívidas”. Passou a receber da LPCC apenas 100 euros e está prestes a poder dizer que já não precisa deles.
Vamos precisar de dinheiro
Manuela e Luís querem que as pessoas saibam “para onde vão os seus donativos” e como eles podem ser decisivos. “Ver, não vi. Mas várias vezes ouvi falar, no IPO, que havia gente a falhar consultas e tratamentos por falta de dinheiro”, conta Luís.
O presidente da LPCC prefere não comentar: “Falo do que sei e disso não sei. Mas estou muito, muito assustado com o que vai acontecer neste ano de 2012”.
“Se há um ano apareciam seis pessoas por dia, agora aparecem dezasseis”, conta Margarida Costa, a assistente social da liga que trabalha no IPO. Uma das pessoas que apareceram foi P., de 38 anos. O marido, que trabalhava na construção civil, teve um cancro no cérebro. Foi operado, passou a ter crises de epilepsia e ela teve de deixar o emprego para cuidar dele e da filha. Porque recebiam a baixa do marido e possuíam habitação própria — construída aos poucos, ao longo dos anos — não tiveram direito a qualquer apoio da Segurança Social. P. não perdoa à técnica que lhe sugeriu que se divorciassem ou que pusessem a casa em nome de terceiros, para que os pudesse ajudar. Sentiu-se à beira do precipício. E também a ela valeu a LPCC.
Carlos Oliveira encolhe os ombros quando lhe perguntam se a quase informalidade e os critérios subjectivos com que a liga distribui dinheiro não a torna vulnerável a fraudes. “Temos sistemas de controlo, mas ainda assim, mais do que dar meia dúzia de euros a quem não precisa, preocupa-me não chegar a quem precisa”, diz.
Oliveira adivinha que “o pior ainda está para vir”, porque, “como no país, em geral, também entre os doentes com cancro há pobreza envergonhada”, explica. Não tem pudor em pedir donativos: “Temos de conseguir chegar a essas pessoas e, quando isso acontecer, vamos precisar de dinheiro para as ajudar”. JN
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